I
Minha
alma deu para me perseguir. Fica dizendo que é a rainha Vitória, que eu
devia liberá-la, que não gostou do meu cabelo tingido, que meu corpo não
combina com o seu jeito, que ando trabalhando demais e dormindo de menos
(na certa quer dar um passeio na minha ausência).
Propus-lhe
então uma troca de almas. Que achasse outra mais apropriada ao meu
temperamento. Impossível. Somos indissolúveis. Além do que eu estava
invadindo a seara dela quando falava em temperamento. Pois bem. Que se
dane. Uma de nós vai ter que desistir primeiro. Com certeza não serei
eu. Papai sempre disse que mulheres bonitas não deviam ter alma.
II
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disse
eu ao amigo que viera de bicicleta
quando
isso não tinha a mínima importância
mas
ele foi embora logo.
tive
de gritar para saber qual era o branco
qual
era o tinto
situação
embaraçosa que prendeu a atenção de todos
mas
logo foi esquecido.
quanto
mais o tempo demorava a passar
mais
a conversa ficava animada
e
como se tudo quisesse ao mesmo tempo
comecei
a me desesperar.
ninguém
sairia dali tão cedo
nem
mesmo um ângulo de imbecil.
fui
até o quarto
a
pretexto de um desalinho
na
segunda gaveta há uma magnum
há
uma magnum na segunda gaveta
que
se projetou das sombras de uns saquinhos de chá sobre os outros. trago-os
sempre comigo para o caso de alguma visita sentir náuseas. sinto uma
enorme pressão na cabeça. de fato é porque estou escrevendo agora.
carrego a magnum numa rápida administração e o que não sei preciso
aprender de vez. vou até o espelho e miro nos olhos da gente. e aí começo
a suar embora a minha roupa seja a mais leve possível. o verão exige um
trabalho minucioso de quem quer sempre manter tudo limpo. ouço teclas
batendo mas eu já disse que prefiro caneta e papel. escreve aí seu
merda. sim vou arrebentar os miolos de todos lá embaixo. a começar pelos
dentes. os dentes. amanhã terei tempo ainda de corrigir umas provas. não
consigo revisar manuscritos com a casa assim tão cheia de gente. desço
correndo a escada sem me apoiar no corrimão que está molhado de não sei
o quê. os convidados parecem ter aumentado de proporção ou será que
foi a cozinheira que preparou essa surpresa para mim? passo por ela e
cochicho que não foi tudo um desperdício afinal. dou uma gargalhada e a
magnum sacode sem derramar uma gota do copo. atravesso a sala como quem não
consegue ler até o fim certos temas tratados num romance. e olhe que eu
nunca atrasei um capítulo. sempre consegui dar um fecho na hora exata.
embora não saiba exatamente o que esse ímpeto significa. lembro-me de
que sentia algo parecido aos vinte anos de idade quando me gripava com
mais freqüência. acompanhei a seqüência da caneta e explodi a primeira
boca em duas linhas. sangue e miolos grudaram no teto. magnífico escritor
inglês! os amigos da cabeça começaram a gritar em torno do que sobrou
dela. não se podia dizer que não fosse uma autobiografia. não, que
absurdo, quero que fiquem, ainda é cedo. o melhor está por vir. afinal
hoje é a primeira vez que faço poesia. sempre preferi lidar com prosa.
mas nem está tão mal assim. vejam. posso alterar duas palavras ou três.
compor um ritmo mais original. é fácil dizer que não se trata de um
grande poema mas se todos se debruçassem sobre a mesa veriam que não
passa de uma visão de mundo. escrevo também para me divertir. e o faço
com o máximo rigor. arrebento agora o peito de um outro convidado que está
de pé junto à minha estante. droga, não consigo fazê-lo sem sujar umas
não sei quantas lombadas. daqui não posso ler que títulos foram
atingidos. nunca havia reparado como sangrar é anti-higiênico. o
nervosismo momentâneo me fez disparar mais vezes seguidas sem me
preocupar com o estilo dos disparos. sempre fui dada a extravagâncias mas
aquilo poderia me prejudicar a expressão. a exatitude. sim. a exatitude.
a verdade é que ninguém tentou me impedir de nada. eu estava livre para
criar. não é assim que a literatura prossegue? também é certo que os
leitores estão ficando cada vez mais treinados, na mesma medida em que os
cães vão aprendendo a atravessar as ruas agitadas de uma cidade grande.
já me disseram que aos meus textos falta unidade. mas agora com essa
magnum vejo que não é bem assim. ela veio para facilitar o meu trabalho.
ela não permitiria da minha parte uma mera representação de imagens ou
superposição de idéias. não. de jeito nenhum. seria trair a mim e aos
meus leitores. e estes são vocês. estão aqui. e eu os busco um a um.
como uma harmonia de vogais. como uma língua que procura sua mãe. penso
que algum dia, num futuro bem distante, algum explorador venha a descobrir
que, próximo à costa do que se costumava chamar América do Sul, alguém
ou alguma civilização fazia suas inscrições à bala como forma de
comunicação. uma forma de escrita sem dúvida caída hoje no
esquecimento.
Nem todo poço é sem
fundo. Arrisque-se.
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